Eu Ideal e Ideal de Eu: Onde foi parar o sujeito

Eu ideal e Ideal de Eu

Este texto discute a distinção entre Eu ideal e Ideal de Eu na teoria psicanalítica, a partir da obra de Freud e Lacan, problematizando seus efeitos na constituição subjetiva. O Eu ideal refere-se a uma instância imaginária marcada pelo narcisismo, onde o sujeito se vê como completo e onipotente; já o Ideal de Eu remete a uma instância simbólica, reguladora, que internaliza exigências da cultura e da lei. Ao explorar a tensão entre essas duas dimensões, busca-se responder à questão “onde foi parar o sujeito”, entendendo-o não como síntese conciliatória, mas como resto, fissura e divisão entre essas instâncias. Argumenta-se que o mal-estar contemporâneo evidencia tanto a exacerbação do Eu ideal, na cultura da performance e da imagem, quanto a fragilidade do Ideal de Eu, em tempos de declínio das referências simbólicas. A psicanálise, nesse sentido, reafirma sua atualidade como ferramenta crítica diante da crise de subjetivação no Século XXI.

Introdução

A psicanálise coloca em evidência que o sujeito não é transparente a si mesmo, mas dividido entre instâncias psíquicas e atravessado pela cultura. Uma das distinções conceituais fundamentais é a diferença entre Eu ideal e Ideal de Eu. Essa diferenciação, ainda que sutil, aponta para destinos diferentes do narcisismo e para a complexa relação entre desejo, lei e reconhecimento.

No contexto contemporâneo, marcado pelo culto à performance e pela fragilização das instituições simbólicas, a questão retorna de forma urgente: onde foi parar o sujeito entre o Eu ideal e o Ideal de Eu? Esta investigação pretende discutir o tema com base em Freud e Lacan, articulando também contribuições de autores contemporâneos que analisam o mal-estar social.

O Eu ideal

Freud introduz a noção de Eu ideal, em seus estudos sobre o narcisismo, situando-o como herdeiro do narcisismo primário (FREUD, 2010). Trata-se de uma imagem de perfeição que o sujeito cria de si mesmo, projetando-se como completo, sem falta e sem limites. Essa instância é da ordem do imaginário, estando ligada ao desejo de onipotência.

No “Estádio do Espelho”, Lacan (1998) retoma a noção, mostrando como o sujeito se constitui ao se identificar com a imagem especular, organizando seu Eu em torno de uma forma ilusória de totalidade. O Eu ideal, portanto, é marcado pela dimensão da imagem e pela alienação.

O Ideal de Eu

O Ideal de Eu, diferentemente, aparece em Freud como instância normativa, herdeira do complexo de Édipo, que se estrutura a partir das exigências culturais e das figuras de autoridade (FREUD, 2010). É um modelo internalizado que orienta o sujeito em direção a padrões de conduta e perfeição.

Lacan (1998) situa o Ideal de Eu no campo simbólico, como lugar do Outro a partir do qual o sujeito se vê e se julga. É a instância que permite o reconhecimento, mas também a submissão às demandas externas. Enquanto o Eu ideal diz respeito ao “como Eu gostaria de ser”, o Ideal de Eu refere-se ao “como o Outro espera que eu seja”.

O sujeito entre o Eu ideal e o Ideal de Eu

O sujeito não se reduz a nenhuma dessas instâncias, mas emerge como efeito da divisão entre ambas (LACAN, 1998). Ele não coincide nem com a imagem narcísica nem com o lugar da Lei, mas aparece como resto, como fissura, como aquilo que não se encaixa plenamente nem no imaginário nem no simbólico.

Byung-Chul Han (2017) observa que a sociedade neoliberal exacerba o Eu ideal, privilegiando o culto à autoimagem e à performance, enquanto fragiliza o Ideal de Eu, enfraquecendo referências coletivas e simbólicas. E, Adorno (2006) já advertia que a modernidade tende a produzir subjetividades incapazes de se reconhecer como autônomas, oscilando entre a submissão e a onipotência.

Análise e discussão

A questão “onde foi parar o sujeito” emerge quando se percebe que tanto o Eu ideal quanto o Ideal de Eu tendem a capturar o sujeito em ilusões de completude ou em imperativos normativos. A psicanálise revela que o sujeito, em sua verdade, não coincide com nenhum desses lugares, mas se constitui como falta, como falta-a-ser.

No contexto atual, marcado pela autoexploração neoliberal, o Eu ideal é reforçado em sua dimensão de imagem, enquanto o Ideal de Eu sofre um esvaziamento, deixando o sujeito entregue a um excesso de liberdade aparente que, na prática, se converte em novas formas de sujeição. Isso gera sujeitos fragilizados, oscilando entre a idealização de si e a angústia de não corresponder a padrões inalcançáveis.

O sujeito, portanto, não desapareceu: ele resiste, mas apenas como resto, como aquilo que não se deixa reduzir nem ao imaginário do Eu ideal nem ao simbólico do Ideal de Eu. É nessa brecha que a psicanálise se inscreve, sustentando a ética do desejo como alternativa ao conformismo da imagem e da norma.

Considerações finais

A distinção entre Eu ideal e Ideal de Eu, longe de ser apenas terminológica, revela dois polos fundamentais da constituição subjetiva. No entanto, o sujeito não se encontra plenamente em nenhum deles.

Responder à questão “onde foi parar o sujeito” implica reconhecer que ele se encontra justamente na fissura, no intervalo entre o imaginário e o simbólico. A contemporaneidade exacerba esse dilema ao hipertrofiar o Eu ideal e enfraquecer o Ideal de Eu, produzindo novas formas de sofrimento psíquico.

A psicanálise, ao insistir na divisão do sujeito, propõe não o apagamento dessa falta, mas sua assunção como condição para a ética do desejo. É nesse ponto que o sujeito encontra sua possibilidade de existir para além da imagem e da norma.

Referências Bibliográficas

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.

FREUD, Sigmund. O ego e o id. Porto Alegre: L&PM, 2010.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura. Porto Alegre: L&PM, 2010.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

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Seu Psicanalista

Doutorando e mestre em Estudos de Linguagens pelo CEFET/MG.

Psicanalista formado pela Associação Brasileira de Filosofia e Psicanálise (ABRAFP); membro pleno da Ordem Nacional dos Psicanalistas (ONP) e do Conselho Brasileiro de Psicanálise Clínica (CBPC).

Coordenador do Projeto de Extensão “PsiLab: Laboratório em Linguagens e Psicanálise” (INFORTEC-CEFET/MG).

Integrante dos grupos de pesquisa: Infortec-Posling-Cefet/MG, Núcleo de Pesquisa Geografia Anticolonial da UFU e do Grupo de Pesquisa Letramento de Percurso da UERGS.

Autor das obras: “O Corpo Hiper-Real em Crash e a Festa Tecnológica: Sedução, Simulação e Fragmentacão”; “A Tecnologia Nossa de Cada Dia: Entre Deuses e Demônios”; “Fragmentos Humanos: Uma autoajuda para que você descubra o sentido da vida e morra em paz”; “SEX’N’DRAMA” e “Arquétipos do Absurdo”.

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