Personalidade autoritária e personalidade narcísica: complementos

personalidade autoritária

Este artigo discute as aproximações e diferenças entre os conceitos de personalidade autoritária, desenvolvido por Theodor W. Adorno e colaboradores no contexto da Escola de Frankfurt, e o de personalidade narcísica, formulado a partir da psicanálise e reelaborado por Lasch, Kernberg e Byung-Chul Han. Argumenta-se que ambos os constructos não apenas descrevem tipos clínicos ou sociológicos, mas representam diagnósticos críticos da subjetividade em diferentes momentos históricos do capitalismo. Enquanto a personalidade autoritária emerge como suporte subjetivo para regimes totalitários do Século XX, a personalidade narcísica ganha centralidade no contexto neoliberal, marcado pela fragmentação dos vínculos sociais, pela intensificação do individualismo e pela lógica do desempenho. A psicanálise de Freud e Lacan contribui para mostrar como esses dois tipos se organizam em torno da relação do sujeito com a lei e com o gozo. Conclui-se que as duas categorias podem ser pensadas como complementares, revelando distintas formas de submissão do sujeito ao mal-estar da cultura contemporânea.

Introdução

A análise da subjetividade em suas formas históricas revela como as estruturas sociais se inscrevem no psiquismo. A pesquisa empírica de Adorno et al. (2019) demonstrou que o fascismo não pode ser explicado apenas por condições econômicas e políticas, mas exige a compreensão de disposições psíquicas que favorecem a submissão à autoridade e a agressividade contra minorias.

Já o diagnóstico de Lasch (1983), seguido por Kernberg (2019) e atualizado por Han (2017), aponta que o neoliberalismo não produz mais sujeitos obedientes e rígidos, mas indivíduos centrados na performance, na autoexploração e na busca incessante de reconhecimento.

Freud (2010) já havia indicado que o mal-estar na cultura se expressa pela tensão entre os desejos pulsionais e as exigências civilizatórias. Lacan (1998), por sua vez, mostra que o sujeito nunca coincide consigo mesmo, pois é efeito da linguagem e do Outro. Assim, tanto a submissão autoritária quanto a performance narcísica revelam modos distintos de lidar com a castração simbólica e com a falta constitutiva do sujeito.

A personalidade autoritária e a rigidez da lei externa

A personalidade autoritária emerge da submissão a uma autoridade externa percebida como absoluta. Adorno et al. (2019) mostram que esses sujeitos exibem rigidez cognitiva, intolerância à ambiguidade e forte disposição à obediência.

Freud (2010), em “Psicologia das massas e análise do eu”, descreve esse fenômeno a partir do processo de identificação com o líder, que ocupa o lugar do Ideal do Eu. O líder concentra o poder e absorve a libido dos indivíduos, que, em sua obediência, renunciam à autonomia.

Lacan (1998) acrescenta que, no discurso do mestre, o sujeito se constitui como objeto a serviço da ordem simbólica. Assim, o autoritarismo não é apenas traço sociológico, mas também efeito discursivo: o sujeito encontra segurança na submissão à lei, mesmo quando isso implica violência.

A personalidade narcísica e a Lei internalizada do desempenho

Com a transição para o capitalismo neoliberal, a lógica da autoridade externa cede espaço à autoexploração. O sujeito já não se submete ao líder, mas a si mesmo enquanto projeto performático.

Han (2017) define a contemporaneidade como sociedade do desempenho, em que o imperativo não é mais “obedecer”, mas “poder sempre mais”. Essa mudança cria uma subjetividade narcísica: aparentemente livre, mas presa ao dever de se autoproduzir incessantemente.

Kernberg (2019) sublinha que o narcisismo patológico se manifesta em relações frágeis, grandiosidade e dificuldade de lidar com frustrações. Lasch (1983), em termos sociológicos, aponta para a cultura da imagem e da autoexibição.

Na perspectiva psicanalítica, Freud (2010) já havia identificado o narcisismo como estágio estrutural do desenvolvimento libidinal, em que o Eu é investido de libido de maneira exacerbada. Lacan (1998) o relaciona ao estádio do espelho, quando a imagem idealizada de si oculta a divisão constitutiva do sujeito. Assim, o narcisismo contemporâneo pode ser entendido como defesa contra a falta, intensificada pela lógica neoliberal.

Entre submissão e autoexploração: convergências críticas

Embora distintos, autoritarismo e narcisismo compartilham a mesma raiz: a heteronomia. Em ambos os casos, o sujeito não se constitui como autônomo, mas é capturado por exigências externas.

No primeiro caso, trata-se da autoridade encarnada no líder, no Estado ou em valores tradicionais; no segundo, da autoridade difusa das métricas de desempenho e da exposição pública. Adorno (2006) já advertia que a barbárie não desaparece com a modernidade democrática, mas se reinscreve em novas formas de dominação.

Lacan (1998) auxilia a compreender essa continuidade ao enfatizar que o sujeito é sempre um sujeito dividido, em falta, que tenta compensar essa falta por meio da submissão (no caso autoritário) ou da performance (no caso narcísico). Han (2017) radicaliza esse diagnóstico ao afirmar que a autoexploração do neoliberalismo é mais eficiente do que a dominação externa, pois o sujeito acredita ser livre enquanto explora a si mesmo.

Considerações finais

A análise das figuras da personalidade autoritária e narcísica permite compreender a historicidade das formas de subjetivação. Ambas respondem ao mal-estar da cultura (FREUD, 2010), mas de modos diferentes: no primeiro, pela obediência rígida à autoridade; no segundo, pela ilusão de liberdade através do narcisismo performático.

Se o Século XX foi marcado pelo fascismo e pela rigidez autoritária, o Século XXI revela uma subjetividade fragilizada pela hiperexposição e pela autoexploração. Entretanto, em ambos os casos, permanece a mesma dificuldade fundamental: a recusa da autonomia crítica e da aceitação da falta constitutiva do sujeito.

Compreender essas formas complementares de subjetividade não é apenas tarefa teórica, mas um imperativo ético-político diante do avanço de novas formas de autoritarismo e do aprofundamento da lógica narcísica no neoliberalismo.

Referências Bibliográficas

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.

ADORNO, Theodor W. et al. The Authoritarian Personality. Londres: Verso, 2019.

CROCHÍK, José Leon. Preconceito, indivíduo e cultura. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura. Porto Alegre: L\&PM, 2010.

FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu. Porto Alegre: L\&PM, 2010.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

KERNBERG, Otto F. Narcisismo, agressão e autoritarismo na era do populismo. Porto Alegre: Artmed, 2019.

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1983.

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Seu Psicanalista

Doutorando e mestre em Estudos de Linguagens pelo CEFET/MG.

Psicanalista formado pela Associação Brasileira de Filosofia e Psicanálise (ABRAFP); membro pleno da Ordem Nacional dos Psicanalistas (ONP) e do Conselho Brasileiro de Psicanálise Clínica (CBPC).

Coordenador do Projeto de Extensão “PsiLab: Laboratório em Linguagens e Psicanálise” (INFORTEC-CEFET/MG).

Integrante dos grupos de pesquisa: Infortec-Posling-Cefet/MG, Núcleo de Pesquisa Geografia Anticolonial da UFU e do Grupo de Pesquisa Letramento de Percurso da UERGS.

Autor das obras: “O Corpo Hiper-Real em Crash e a Festa Tecnológica: Sedução, Simulação e Fragmentacão”; “A Tecnologia Nossa de Cada Dia: Entre Deuses e Demônios”; “Fragmentos Humanos: Uma autoajuda para que você descubra o sentido da vida e morra em paz”; “SEX’N’DRAMA” e “Arquétipos do Absurdo”.

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