Sintoma e Sinthoma em Lacan: entre o significante e o gozo

psicanálise lacaniana

A psicanálise lacaniana opera com uma concepção singular de sintoma, que se desloca ao longo do ensino de Jacques Lacan. Inicialmente, o sintoma é compreendido como formação do inconsciente, tal como em Freud, estruturado como uma linguagem. Mais tarde, especialmente a partir do Seminário 23, Le Sinthome (1976), Lacan introduz o termo “sinthoma” para marcar uma diferença decisiva em relação à concepção tradicional.

Na primeira clínica lacaniana, o sintoma é efeito do significante. Surge como substituição de uma satisfação pulsional recalcada, retornando disfarçadamente na linguagem, como metáfora de um desejo. Nessa perspectiva, “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” (LACAN, 1998, p. 517), e o sintoma é interpretável, funcionando como uma mensagem cifrada. A interpretação, então, visa decifrar o sintoma, permitindo ao sujeito atravessar seu fantasma e reposicionar-se em relação ao desejo.

Contudo, à medida que a teoria de Lacan avança, ele evidencia que nem todo sintoma se presta à decifração. Há algo de opaco, de gozo, que resiste à interpretação. Isso se torna especialmente evidente em estruturas como a psicose, onde a função do Nome-do-Pai está foracluída e a linguagem não opera como mediação simbólica suficiente para amarrar os registros Real, Simbólico e Imaginário.

É nesse ponto que Lacan propõe o conceito de sinthoma — termo de grafia arcaica, inspirado por sua leitura de James Joyce. Em O sinthoma, Lacan (2007) afirma que Joyce fez de sua escrita uma suplência ao Nome-do-Pai, uma invenção que lhe permitiu existir como sujeito e artista. O sinthoma, nesse sentido, é mais que um sintoma interpretável: é um modo de gozo singular que amarra os três registros de maneira própria, funcionando como quarto nó no nó borromeano.

Exemplos clínicos ajudam a iluminar essa distinção. Considere o caso de um sujeito histérico, atendido em clínica de orientação lacaniana, cuja queixa era a repetida sensação de fracasso nos relacionamentos afetivos. A escuta permitiu localizar a relação entre o sintoma e uma demanda de amor não correspondida, dirigida à figura paterna. Nesse caso, a interpretação simbólica — apontando o valor significante da repetição — levou à travessia do fantasma, deslocando o sujeito de sua posição de objeto do desejo do Outro. O sintoma, aqui, foi interpretado, desmontado, e seu sentido, elucidado no discurso.

Em contraste, na clínica com estruturas não-neuróticas, como a psicose ou certos casos de autismo, o sintoma muitas vezes não responde à decifração. Um exemplo é o de um jovem psicótico que, após episódios de desorganização psíquica, desenvolveu uma prática obsessiva de colagens visuais. A repetição dessa atividade não se prestava à interpretação simbólica, mas sua função era evidente: manter uma consistência mínima do corpo e do pensamento. Esse fazer colagem, que se sustentava fora da lógica do sentido, operava como sinthoma — uma invenção singular que amarrava o sujeito ao mundo, dando-lhe lugar e função.

Essa virada implica uma mudança ética e clínica: não mais a cura pela dissolução do sintoma, mas uma operação de amarração do sujeito em torno do que nele insiste como gozo irredutível. O sinthoma não é o que se interpreta, mas aquilo com que se convive, se maneja, se cria. Como diz Miller (2007, p. 18), trata-se de “saber-fazer-com” o sinthoma — ou seja, fazer dele um ponto de apoio à existência.

A clínica do sinthoma, portanto, não pretende eliminar o sofrimento, mas transformá-lo em estilo, em solução singular. A escrita de Joyce, as colagens do jovem psicótico ou mesmo as práticas obsessivas de artistas e inventores são formas de dar consistência à existência por meio do gozo, além da linguagem estruturante do Édipo. Como afirma Lacan (2007, p. 14), “Joyce apresenta uma suplência à foraclusão do Nome-do-Pai por meio de sua escrita, fazendo do sinthoma um modo de amarração dos registros Real, Simbólico e Imaginário”.

Em suma, a distinção entre sintoma e sinthoma em Lacan revela uma passagem da clínica da interpretação para a clínica do real, em que o foco não está mais no deciframento simbólico, mas na invenção de uma solução singular para o impasse do gozo. Essa perspectiva renova a ética da psicanálise, enfatizando a singularidade do sujeito e a função criativa do sintoma como sinthoma.

Referências Bibliográficas

LACAN, Jacques. O seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

MILLER, Jacques-Alain. O osso do sinthoma. In: __. Os signos do gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

MILLER, Jacques-Alain. O ser e o um. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (1930). In: __. Obras completas. v. 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Compartilhe!

Esse post foi escrito por:

Picture of Psicanalista Marlon Nunes

Psicanalista Marlon Nunes

Ressignificação do sujeito através da psicanálise e da linguagem.

CONHEÇA

Seu Psicanalista

Psicanálise
Doutorando e mestre em Estudos de Linguagens pelo CEFET/MG, com formação em psicanálise pela ABRAFP. É membro da Ordem Nacional dos Psicanalistas (ONP) e do Conselho Brasileiro de Psicanálise Clínica (CBPC). Coordena o projeto de extensão “Apoio a Docentes via Linguagem e Psicanálise” no CEFET/MG, além de integrar importantes grupos de pesquisa, como o Infortec-Posling-Cefet/MG, o Núcleo de Pesquisa Geografia Anticolonial da UFU e o Grupo de Pesquisa Letramento de Percurso da UERGS. Autor de livros que investigam a relação entre tecnologia, psicanálise e a construção do sujeito, suas obras incluem títulos como “O Corpo Hiper-Real em Crash e a Festa Tecnológica” e “Fragmentos Humanos”, abordando desde a sedução tecnológica até questões existenciais e sociais

Veja também:

O Caso Schreber
Psicanálise

O Caso Schreber

O Caso Schreber O Caso Schreber, um dos mais famosos da psiquiatria, envolve o paciente Daniel Paul Schreber, que sofreu de esquizofrenia e foi tratado

Leia Mais »
Narcisismo
Psicanálise

Narcisismo

Narcisismo Narcisismo O narcisismo é um conceito fundamental na psicanálise, introduzido por Sigmund Freud em sua obra “Introdução ao Narcisismo”. Ele se refere ao estágio

Leia Mais »